Oração a Deus

François-Marie Arouet dit Voltaire

Não é mais aos homens que me dirijo, é a Ti, Deus de todos os seres, de todos os mundos e de todos os tempos. Se é permitido a frágeis criaturas perdidas na imensidão e imperceptíveis ao resto do Universo, ousar Te pedir alguma coisa, a Ti que tudo criaste, a Ti cujos decretos são imutáveis e eternos, digna-Te a olhar com piedade os erros decorrentes de nossa natureza. Que esses erros não venham a ser nossas calamidades. Não nos destes um coração para nos odiarmos e mãos para nos matarmos.

Faz com que nos ajudemos mutuamente a suportar o fardo de uma vida difícil e passageira; que as pequenas diferenças entre as roupas que cobrem nossos corpos diminutos, entre nossas linguagens insuficientes, entre nossos costumes ridículos, entre nossas lei imperfeitas, entre nossas opiniões insensatas, entre nossas condições tão desproporcionadas a nossos olhos e tão iguais diante de Ti; que todas essas pequenas nuances que distinguem os átomos chamados homens não sejam sinais de ódio e perseguição.

Que os que acendem velas em pleno meio-dia para Te celebrar suportem os que se contentam com a luz de Teu sol; que os que cobrem suas vestes com linho branco para dizer que devemos Te amar não detestem os que dizem a mesma coisa sob um manto de lã negra.

Que seja igual Te adorar num jargão formado de uma antiga língua, ou num jargão mais novo; que aqueles cuja roupa é tingida de vermelho ou de violeta, que dominam sobre uma pequena porção de um montículo da lama deste mundo e que possuem alguns fragmentos arredondados de certo metal usufruam sem orgulho o que chamam de grandeza e riqueza, e que os outros nãos os invejem, pois sabes que não há nessas vaidades nem o que invejar, nem do que se orgulhar.

Possam todos os homens lembrar-se de que são irmãos! Que abominem a tirania exercida sobre as almas, assim como execram o banditismo que toma pela força o fruto do trabalho e da indústria pacífica! Se os flagelos da guerra são inevitáveis, não nos odiemos, não nos dilaceremos uns aos outros em tempo de paz e empreguemos o instante de nossa existência para abençoar igualmente em mil línguas diversas, do Sião à Califórnia, Tua bondade que nos deu esse instante.

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No final de sua obra Tratado Sobre a Tolerância, Voltaire inclui esta prece.

Embora datada de muitos séculos, continuará atual, sempre que houver seres que se creiam ricos e poderosos perante outros; sempre que houver quem se creia estar acima das verdades deste e d'outros mundos.

É certo que o nosso querido e nobilíssimo Voltaire atacou verdades em seu tempo que a ele desconhecidas eram, em virtude de seu caráter e conhecimento restrito da espiritualidade. No entanto, as verdades deste mundo ele sempre as viu com clareza e discernimento, atacando ferrenhamente o flagelo da nossa sociedade.

Instantes Preciosos