Alma de Minha Alma

Victor-Marie Hugo

Eunice¹, alma querida:

Sustente-nos o Senhor em nossas lutas redentoras!

Estou vivo! Ninguém morre! A morte é ilusão dos nossos débeis sentidos, e os humílimos códigos, com que pretendemos decifrar os desígnios divinos, não conseguem traduzir a magnitude das excelsas leis da vida.

Não nos separamos, pois sendo a morte um novo nascimento, faz com que os verdadeiros amores, longe de afrouxarem ante a realidade do despertar espiritual, ainda mais se estreitem, transformando-se em liames de incomparável beleza, promessas de ventura inefável. Aqui dealbam* madrugadas de luz inexcedível e estuam* os nobres sentimentos que sustentáramos na jornada vencida.

Logo se desagregam os tecidos na lama do sepulcro, plaina o espírito liberto, se soube avançar nos cometimentos de elevação, sem as amarras coatoras* da retaguarda.

A princípio, tudo me pareceu fascinante, deslumbrador. Era uma esfera de sonho, um país de encantamento. Logo, porém, foram superadas as horas iniciais e vencida a ligeira turbação, atendido que fui por afeiçoados Amigos que me houveram precedido, passei a compreender, discernir, fixar-me, quase feliz, na realidade nova. Quase feliz, porque a lembrança da sua figura ausente fazia-me experimentar dorida falta. Adaptando-me, como alguém que se refaz de complexa e inadiável cirurgia, fui integrando-me na Comunidade em que estacionava. Esclarecido quanto às circunstâncias atuais, mantive-me, então, sereno, ligado ao nosso perene afeto.

Percebi, todavia, quanto de dor lhe pesava sobre os ombros, como ônus de saudade e quase desespero. Povoou-se de amarguras o meu céu de esperanças e, tocado pelo amor inefável que acalentamos reciprocamente, comecei a experimentar, em mim mesmo, as interrogações da sua mente, contínuas, tormentosas, aflitivas... Impossibilitado de respondê-las todas, somente hoje posso fruir a ventura indizível de falar-lhe, já que a nímia* deferência dos Espíritos Eleitos nos concedeu esta venturosa oportunidade que nos dulcifica, lenificando* as agonias que se demoravam agasalhadas em nossos sentimentos.

Revejo-a em longo noivado, a menina do passado, a esposa de ontem, a alma da minha alma, para os caminhos do sem-fim, no infinito dos tempos e dos espaços...

Não se afadigue mais sob a canga do desespero nem se intoxique com o gás letal da revolta interior, injustificável.

Prosseguimos juntos no serviço redentor com o qual nos comprometemos. Os filhos do sofrimento são nossos irmãos de ontem tenebroso, a quem devemos assistência e carinho - nossa oportunidade ditosa de ser felizes! Os pequeninos colhidos pela singular orfandade, embora com pais vivos, são os herdeiros do nosso afeto profundo, competindo-nos ajustá-los às condições novas, empenhados, como nos encontramos na realização dos nobres ideais da solidariedade e do amor, de que se fez modelo o Messias Nazareno.

Não desanime, nem se deixe desfalecer! Hoje é nossa hora ditosa, que nos não cabe desperdiçar.

Voltaremos a estar juntos, no amanhã próximo, quando ficarem concluídos os empreendimentos, por enquanto ainda a meio de caminho.

Quando a vejo debruçada na janela da saudade, vertendo copioso pranto, interrogando aos Céus o porquê de me haver afastado transitoriamente, suas palavras me chegam como se fossem golpes de relho ou gotas de ácido, ferindo-me, inquietando-me. Quando possível, acerco-me de você e a envolvo em ternura, falando-lhe das estrelas no firmamento fulgurante, apesar da noite aparente, que convida à reflexão... Você então se acalma, para logo retornar às mesmas indagações inquietadoras.

Somente a oração tem-me ajudado a aguardar este precioso momento.

Assim, peço-lhe que veja em cada sofredor do caminho o meu coração ansioso, os meus pés trôpegos, e faça a ele o que faria por mim. Afogue no amor ao semelhante a dor da saudade, multiplicando os seus celeiros de alegria interior e de esperança...

Coragem! Continuemos com as mãos enlaçadas no serviço do Cristo.

Exulto ao vê-la avançar, abnegada e cristã.

Tudo quanto possuímos é empréstimo da vida. Demo-nos, portanto, mais e mais. Onde está o amor, aí se encontra Nosso Pai, o Perene Doador.

Os que não a compreendem esperam sua compreensão; aqueles que a afligem, inconscientemente supõem que você poderá desculpá-los. Não lhe cabe decepcioná-los: continue, intimorata*, de ânimo robusto!...

Dia virá em que os liames da carne se afrouxarão e o seu espírito, liberto da sombra e da ansiedade, volitará. Então, voltaremos a estreitar-nos, em paisagens de exuberante luz, na alegria do dever bem cumprido...

Escoa-se-me o tempo. Havia tanto a dizer!...

Amo-a, alma querida, como nunca!

Esperando o momento do reencontro ditoso, envolve-a, na incessante ternura do coração, o seu de sempre, Weaver².

***

Eunice Sousa Gabbi Weaver¹, pioneira brasileira na luta contra a lepra (São Manuel, SP, 1903 - Porto Alegre, RS, 1969), fundadora da Sociedade de Auxílio aos Leprosos de Juiz de Fora e presidente da Federação das Sociedades de Defesa contra a Lepra. Fora esposa do Dr. Charles Anderson Weaver², estadunidense.

No trecho acima, o autor espiritual narra uma mensagem de Anderson para Eunice, ainda encarnada naquela ocasião.

***

* dealbam: branqueiam, aclaram; estuam: fervem, agitam-se; coatoras: aquelas que coagem, que forçam; nímia: demasiada, excessiva; lenificando: suavizando; intimorata: sem temor, destemida.

***

Livro Sublime Expiação - Victor-Marie Hugo

Instantes Preciosos